Lei só permite apreensão de valores que excedam R$ 66 mil, mas tribunal relativizou regra. Veja o que muda
No dia 19 de abril, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) relaxou uma regra que proibia a penhora do salário do devedor. Por maioria, os ministros julgaram que a previsão legal não condiz com a realidade brasileira e entenderam que a medida pode ser determinada em caráter excepcional desde que preservada a dignidade do devedor.
Hoje, a lei estabelece que o salário, assim como outras classes de sustento do trabalhador, é impenhorável. Isso quer dizer que ele não pode ser usado para o cumprimento de qualquer obrigação. Mas existem duas exceções. A proteção não se aplica quando o assunto é pensão alimentícia ou quando a remuneração do devedor superar o limite de 50 salários mínimos mensais. Com a decisão do STJ, devedores que ganham bem menos do que isso poderão ter seus salários penhorados.
O caso que chegou ao STJ está fundado em uma dívida com origem em cheques de aproximadamente R$ 110 mil. O credor pediu a penhora de 30% do salário da pessoa endividada, cujo valor girava em torno de R$ 8.500. Ele argumentou haver precedentes no Tribunal sobre a possibilidade de penhora nas situações em que apenas ficasse garantida a dignidade do devedor.
A tese foi acolhida pelo relator do recurso, ministro João Otávio de Noronha. Para ele, é possível a relativização da impenhorabilidade, cabendo ao julgador pesar os direitos tanto do devedor quanto do credor e dar a solução “mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade”.
“A fixação desse limite de 50 salários mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e de sua família,” frisou.
O ministro ressalvou que a penhora só deveria ser aplicada “quando restarem inviabilizados outros meios executórios que garantam a efetividade da execução”, e desde que “avaliado concretamente o impacto da constrição sobre os rendimentos do executado”.
Fernando Gajardoni, juiz e professor de Direito Processual Civil na USP de Ribeirão Preto, explica que o STJ já havia relativizado a impenhorabilidade do salário quando nem existia o teto de 50 salários mínimos. Agora, o que os ministros entenderam foi que o entendimento prevalece mesmo diante do limite legal.
Na prática, afirmou o processualista, todo valor que exceder os 50 salários mínimos pode ser penhorado. Se a remuneração for menor que isso, cabe ao julgador avaliar se é ou não o caso de penhora. “No caso concreto, se o juiz verificar que a pessoa não precisa de 40, 30, 20 salários mínimos para viver, mas apenas de 10, o restante poderia ser penhorado.”
Considerando o valor do salário mínimo de R$ 1.320, a ser pago a partir de 1º de maio, o limite estabelecido em lei chega a R$ 66 mil. “Preferia que o legislador tivesse estabelecido um critério objetivo palpável. Diante dessa falta de realidade do legislador, acho que o Superior Tribunal de Justiça teve de fazer essa interpretação proativa,” considerou Gajardoni.
Alessandro Fonseca, sócio de gestão patrimonial, família e sucessões do Mattos Filho, fez eco à opinião. Segundo o advogado, havia um excesso de proteção ao devedor, sendo que, do lado do credor, nem sempre há “uma pessoa abastada, que não precisa do dinheiro.”
“Do ponto de vista jurídico, é uma decisão boa,” porque dá ao credor a possibilidade de “resolver sua vida com mais agilidade e contribui para o equilíbrio do contrato que foi celebrado”. “A relativização é bem-vinda,” concluiu Fonseca, que espera um aumento de medidas nesse sentido a partir de agora.
A tarefa de fazer a avaliação é do magistrado, mas a produção de provas deve ficar nas mãos do credor. De acordo com Andre Roque, professor de Direito Processual Civil da UFRJ e sócio de Gustavo Tepedino Advogados, é o credor quem precisa comprovar que o salário do devedor é o bastante para a subsistência, assim como para o pagamento do crédito.
“Os principais impactados são os profissionais liberais e empregados com alta remuneração,” afirmou Roque. “É uma decisão judicial focada nas pessoas que não mantêm um patrimônio penhorável em seu nome (acima de 50 salários mínimos), mas que recebem altos rendimentos e poderiam arcar com a dívida destinando um percentual de sua remuneração.”
José Carlos Baptista Puoli, da Faculdade de Direito da USP, no entanto, viu problemas na decisão. Para ele, primeiro, estão na mira todos os devedores assalariados, porque dependerá do caso a caso. Isso, no mais, trará uma série de dificuldades por haver diversas variáveis a serem consideradas, como o preço do aluguel, o valor da escola dos filhos, gastos médicos.
“Você tira algo que hoje é objetivo e coloca coisas muito subjetivas no lugar. Qual vai ser o parâmetro?,” questionou. “O magistrado terá que fazer uma fundamentação rica, e isso é um ponto de preocupação. As decisões serão dadas com esse nível de detalhamento para nos dar segurança de que aquilo é razoável e justo no caso concreto?.”
Puoli também disse ser “preocupante” o fato de os ministros terem afastado o critério da lei sem que a regra tenha sido declarada inconstitucional. A questão é saber em que situação e com base em quais critérios o dispositivo pode ser afastado daqui para frente. Isso só ficará claro após a publicação do acórdão, afirmou.
A decisão foi tomada pela Corte Especial do STJ, responsável por uniformizar a interpretação dos órgãos especializados do Tribunal, no EREsp 1.874.222.
Dessa forma, o entendimento deverá ser considerado por outros magistrados. Ainda cabe recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Fonte: JOTA
Data: 05/05/2023